quarta-feira, 5 de setembro de 2012

minha valise e luas de saturno


A quem eu devo culpar por minha mania horrível de pensar mil vezes na situação? Medo, talvez. Mas isso requereria que a culpa fosse só minha, e isso eu não quero. Já levo coisas demais nessa valise, que chega a não fechar. Roupas azuis escapando nas aberturas fora do lugar, pontas de cigarro, meias furadas, dinheiro amassado. Não cabe culpa aí. A inevitável maneira de seguir , naturalmente, é esquecendo. 

Vivendo miseravelmente porque meu pai sacudiu meus ombros quando eu tinha onze anos, dizendo pra eu não escrever mais bobagens. Suas mãos eram rudes e do tamanho dos meus ombros infantis. Eu devo culpar a ele? Não é do tipo que merece ódio nem amor. Carregava a alma como um operário carrega um carrinho de mão. Até porque assuntos da alma ou do universo não eram sua prioridade. A culpa não é dele. Nem de minha mãe que chorava todos os dias na sala depois que ele morreu, e chorava ainda mais porque eu não havia chorado sua morte. 

Eu devo culpar Marina, que me fez começar a fumar? Ana? A infeliz que ameaçou seu próprio pulso com uma faca pra me testar? Deus, por me meter no meio dessa gente toda? Vou remoer horas (e as horas) até encontrar a terrível resposta de que eu não herdei meu péssimo hábito de remoer. 

É só destino, meus amigos. 

Sonhei, pela terceira vez, que uma cigana puxava minha mão em uma dessas praças em que só tem turistas. Eu ficava sem jeito, mas deixava ela ler minhas linhas, e, quando fui pagar, a mulher só me olhou assombrosa e saiu sem pegar o dinheiro. Acordo e me volto aos versos, como se eu tivesse onze anos, como se as mãos de meu pai ainda estivessem lá, então escrevo com mais fúria. Passeio os dedos sobre o relevo que as palavras fazem sobre a folha e percebo a plenitude de tudo isso. Meu encontro com as palavras perdidas em tantos anos, o ápice do que seria paz, uma inexplicável solução de tudo, misterioso abrigo pra essa minha posição fetal no meio do tapete da sala. Para onde não cabe mais, lua de saturno. 

3 comentários:

  1. Fernanda, fiquei super tocado com esse texto.

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  2. Eu percebo em você uma criança que sofreu influências ruins, e é por isso que você se encontra nesse atual estado, desesperador.
    Eu já passei muito por isso, e posso te garantir que a sede de melhora veio de dentro. Para tanto, não houve motivação exterior. Eu quis lutar por mim. E consegui. Abraços.

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  3. A leve inconstância que percebo na sua escrita a torna extremamente cativante e interessante. Anda, muitas vezes, na linha tênue entre "algo que pensei" e "algo que senti". Sinto, de vez em quando, uma transição de esforço a desabafo. Uma crueza agradável.

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