Lembrem o
velho clichê: "A mente é um excelente servo, mas um senhorio
terrível." Como tantos clichês, também esse soa inconvincente e sem graça.
Mas ele expressa uma grande e terrível verdade. Não é coincidência que adultos
que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça.
Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de
apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação na área de humanas,
eliminadas todas as bobagens e patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o
seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e respeitável
vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa
configuração padrão - a de sermos singularmente, completamente, imperialmente
sós.
[...]
É num
momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da
escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no
supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente
sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida,
porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem
respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa.
Parecerá sempre que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas,
aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas
parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos
celulares.
[...]
Mas existem
outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a
possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e
frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente
têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.
[...]
O mundo
jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos
homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo
desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue
canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade
pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados
individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.
Esse tipo de
liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade
mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e
exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina,
esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros - no cotidiano,
de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a
liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido
alguma coisa infinita.
Pensem de
tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio
de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões
grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito
à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem
querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência - consciência
de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor -
daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: "Isto é água, isto é água".
É
extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia
depois do outro.
David Foster
Wallace, em 2005.
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