"Disse-lhe
que era uma criança-nenúfar muito antes de saber o sentido dessas palavras. Eu
não queria, positivamente, ser o que quer que fosse. Estava como naquele poema
do Régio: toda não-ir-por-aí. Ser nenúfar era não-ser parte do todo, estar
apartada, sem partido. Houve várias coisas em que eu não pensei, por exemplo,
Monet. Não me lembrei de Lótus, Brahma ou Ganesh. Não tive em consideração as
ninfas nem o nascimento do mundo. Disse-lhe que era uma criança-nenúfar para
que ele se risse, e é só. Nenhum de nós deu conta daquilo em que a palavra me
transformara - se é que as palavras ainda transformam alguma coisa. Se ficou
tão difícil escrever, só pode ser por isso. Um nenúfar não tem mãos nem braços,
é todo superfície, flor e rizoma.
Não me
sinto sozinha neste charco indo-europeu onde, desde a Era do Bronze, temos
flutuado. Em corrente tão fraca não é raro tocarem as minhas folhas em
nenúfares maiores. A todos as abelhas vêm beber: aos anatólios, aos micénicos,
aos lisboetas. Não creio noutra coisa: cada nenúfar é um e é todos os
nenúfares. Não poderia inverter a ordem desta frase, cultivo assim a minha
vontade, o meu carácter botânico. Celebro, pois, as águas de onde nascemos, as
raízes nutridas de semelhantes amores, as folhas galilaicas cumprindo
religiosamente a lei da queda dos graves (nos lagos artificiais), as azeitonas
mergulhadas em barris por três estações - para que as comamos juntos, para que
sejamos três, ou mais, sempre uns e outros, nós todos."
Catarina em trama.
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